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A CORUJA, O MASTODONTE, O FAZEDOR DE BURACOS E OUTROS MISTÉRIOS - de MAYA BLANNCO

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010.
Apresentação
(dtos. registrados)
A história, a ser divulgada em episódios, conta as aventuras de intrépido cavalheiro de terras estrangeiras, em uma de suas muitas andanças pelo mundo. Todo o ocorrido é narrado pelos demais personagens, cada qual mostrando sua visão sobre os acontecimentos. É através dessas diversas vozes, aí incluídas as divagações de um singular mascote, a coruja do título, no caso, que conhecemos a natureza desse homem incomum, e como, em sua aparente ingenuidade, é capaz de ver o que não pode ser visto, entender aquilo que está acima da compreensão de todos nós, os outros.


Capítulo 1: Frederico, Bairro Alto, Lisboa, Portugal
Pertenço à família dos rapinantes, ou assim me consideram: sou uma coruja- das-neves.
Nasci nas regiões geladas da taiga, mas cedo parti para terras de fora, na ilustre companhia de um jovem cavalheiro português, descendente de africanos, que me batizou com o imponente e curioso nome de Frederico.
Contam que as corujas-das-neves não suportam a vida em cativeiro, que são aves solitárias, tímidas e silenciosas, mas orgulhosas e independentes. Não sei o que é um cativeiro e não conheço outros como eu, portanto, nada posso falar quanto a isso.
Do humano sob cujos cuidados fiquei, afirmo que me dispensa o respeito e as deferências devidas à minha espécie. Mathias (é como se chama) é meu amigo, o único que tenho, devo ressaltar. Bem, ...não posso deixar de citar o dono da confeitaria, Antônio Joaquim, africano legítimo este, foragido de Moçambique (ouvi dizer). Se não é exatamente meu amigo, certo é que tem por mim grande apreço. Tanto que, vez por outra, brinda-me com um mimo qualquer, sempre muito gentil e atencioso. Jamais se esquece de afagar-me a cabeça (não é de fato coisa que eu permita a qualquer um: a cabeça de uma coruja é sagrada).
Vivo muito bem - sou praticamente feliz.
O que volta e meia me traz alguma nostalgia é aquela sensação do vento frio roçando minhas asas, o sol baixo do crepúsculo em meus olhos, o céu enchendo-se de cristais de luz. É bem verdade que tudo isso não passa de uma vaga recordação, pois quando deixei minha terra era muito novo decerto.
Não fosse a lembrança do sopro do vento em minhas asas, seria completamente feliz.
Mas não me queixo. Tenho meu amigo a meu lado o tempo inteiro, temos longas conversas, partilhamos confidências, a nosso modo. Dividimos a paixão por esse estranho equipamento humano chamado televisão. Ajeito-me em seu robusto ombro e, juntos, assistimos aos noticiários. É a coisa mais surpreendente deste lado do mundo, confesso, as tais notícias. Ouve-se de tudo um pouco. Claro está que pouco compreendo do que é dito, apesar de minha longa convivência com os humanos. Logo percebi que o mundo dessas criaturas é muito bizarro e encontra-se muito além do entendimento de uma coruja.
Outro dia mesmo escutei uma história que me pôs aturdido.
Um consórcio de cientistas e empreiteiros europeus e japoneses (não me perguntem o que é um cientista ou empreiteiro, tampouco imagino o que seja um japonês) está terminando a construção de uma fabulosa galeria que circunda todo o velho continente, passa por dentro das montanhas e debaixo do mar. O ponto de partida, segundo apurei, é um profundo e comprido túnel nos Alpes Austríacos.
No dia em que ouvi do fato, estavam por concluir um dos últimos trechos, o que avança pelo mar. Considerei a coisa toda uma insensatez completa. Vejam, com tanta terra neste mundo, para que fazer um buraco no mar?
Contudo, para minha surpresa, meu amigo ficou pra lá de entusiasmado. Não se falou de outro assunto em casa depois disso. Mathias não parava de contar de sua habilidade de cavador de buracos: o maior fazedor de buracos de todo o Algarve, repetia sem trégua. Era verdade que há muito se aposentara, porém um projeto daquela envergadura haveria de requerer a sua contribuição. Afinal, onde iriam encontrar alguém como ele? Precisava falar da nova ao compadre Antônio, que este era homem de letras e lhe daria o conselho adequado.
E foi aí que tudo começou. Mathias e eu partimos para terras europeias. Esta foi outra informação que não alcancei compreender, pois a mim sempre pareceu que já estávamos na Europa. Nunca me havia ocorrido, até então, que a pátria lusitana houvesse mudado de lugar.
Que sei eu? Sou apenas uma coruja.


Capítulo 2: Antônio Joaquim, Elevador da Bica, Lisboa, Portugal
Hoje, estive em casa de Mathias, e saiu-me ele com a conversa do túnel.
Tenho cá comigo que, desde que o homem voltou daquela viagem ao Ártico, ou sei lá que nome se dê às tais terras geladas por onde andou, perdeu-se de vez. Não imagino o que terá visto e ouvido por lá, ou o que lhe terão feito os estrangeiros, mas asseguro que o velho Mathias nunca mais foi o mesmo. Bastou-me cinco minutos de prosa com o amigo, tão logo dei com ele no aeroporto, para que tivesse certeza do que aqui falo. Mas, se dúvida restasse, teria desaparecido quando o vi surgir com a gaiola dourada e o tal bicho dentro.
Jesus!
Passou-me um arrepio de morte ao deparar com a tal criatura de penas, tão branca de doer as vistas (e veja que as tenho muito boas), e aqueles olhos redondos, amarelos, que ficavam a olhar para mim para qualquer lado que me movesse, posto que o bicho, depois soube, gira toda a cabeça sem precisar mexer o corpo.
Coisa do Demônio! Só pode ser!
Mais apavorado, penso eu, só fiquei quando bateu-me à porta a polícia, atrás do miúdo da Maria.
O ocorrido deu-se no meu saudoso Algarve ( vivia eu então por lá), quando tomei o pequeno a meus serviços na padaria. Houve por informar-me depois, e isso já corria à larga pelo bairro na época, que o miúdo andava metido em um lucrativo negócio no ramo de entretenimento e turismo.
Confesso que não entendi muito bem como se desenrolou a coisa toda.
Ao que parece, assim que terminava o expediente em meu estabelecimento, partia para um segundo trabalho, de administrador e gerente de um clube noturno da moda, onde empregava umas raparigas de bons dotes, cujo serviço era proporcionar atendimento à vasta clientela. Ia indo tão bem, contou-me a Maria, que já pensava em abrir um novo clube.
Eu, por mim, não vejo em que isto pudesse interessar às autoridades, pois está visto que o miúdo era muito empreendedor. Além de ajudar-me na lida o dia inteiro, ainda encontrou disposição para abrir um comércio de seu e contratar a mão-de-obra das senhoritas que, segundo contaram, estavam apenas a ganhar o seu sustento.
É como disse a Maria.
Não pode um ver o vizinho a prosperar que já se põe a inventar casos a respeito do pobre, a meter intrigas a toda gente. Ouve lá: assim andam as coisas em Portugal. Os patifes estão a tomar conta de tudo, e um homem que queira fazer a vida e prosperar tem que se ocupar desses percalços.
O final do episódio foi que nem a Maria pôs mais os olhos no miúdo.
Disse-lhe eu, e estava convicto disso, que o rapazola haveria de ter-se enfadado com o acontecido e, por certo, partira do Algarve para abrir outro negócio. Quiçá em terras de fora.
É o melhor que terá feito.
Tivera eu a idade do miúdo, também ia-me para terras de fora (como já o fiz, de fato, em sendo moço)!
Falava eu, todavia, do pássaro branco do Mathias.
Admito que o sucedido no aeroporto tirou-me o sono naquele dia. Verdade seja dita, com o tempo habituei-me ao bicho (Frederico, é como o chama Mathias). É bem manso, por certo, e sempre que vou ter com meu amigo levo-lhe algo, umas frutas, umas sementes, que seja. Jamais saio de lá sem fazer-lhe um afago na cabeça felpuda. Apeguei-me tanto a ele, que me dói vê-lo na gaiola (não que fique o tempo inteiro nela, ao contrário). Mas é pro bem dele. Se o deixassem solto, algum outro animal, ou até um transviado, podia fazer-lhe mal.
Mathias revelou-me que encontrara a ave nas terras Árticas, assim, quase por acaso. Explicou-me que o coitado caíra-lhe em cima vindo do céu.
São deveras esquisitas as coisas que caem em cima de Mathias. Lá no Algarve todos sabiam. Num dia de chuva, corria ele para casa e, de repente, jogaram-lhe em cima, ninguém apurou de onde, um embrulho grande, que foi estatelar-se no chão, a centímetros da cabeça do homem. O estrondo foi ouvido a várias quadras dali. Ao juntar-se a multidão para ver o que era, espantou-se. Uma viola, partida em pedaços! Quem haveria de imaginar?
Continuando, acerca da coruja, Mathias engajou-se numa expedição com uns cientistas ingleses (e não me perguntem onde os conheceu, porque nem mesmo a mim o revelou, talvez o tenha dito ao Frederico, quem sabe) e, no dia do acontecimento, saiu com eles numa exploração, quando, de súbito, sentiu que algo lhe tombava no colo. Assustou-se, é claro, e pulou pra trás. Ao retornar, na companhia dos demais, viu o animal estendido no gelo, com uma asa retorcida. Um dos cientistas logo identificou o animal: uma coruja-das-neves, uma espécie de grandes caçadores. Era muito incomum tombar um deles assim em cima de um, vindo do céu. Mathias hesitou um pouco, contou-me ele, não sabia se recolhia o bicho ou não, mas deixou-se cair de amores pelo pássaro, tão pronto abriu os olhos para ele.
Compreendi o sentimento do amigo, pois também eu aprecio muito o Frederico. Serão aqueles olhos amarelos feiticeiros, que sei eu?
Mas estava eu outro dia em casa do amigo, a relembrar fatos do nosso Algarve, e eis que veio ele com a ideia maluca de ir-se à Europa com Frederico para juntar-se ao maior empreendimento destes tempos: cavar um buraco gigantesco no mar, não sei com que finalidade, a cruzar todo o continente (leva-me tempo compreender o raciocínio de Mathias, apesar de considerar-me, sem falsa modéstia, homem de letras). Com a experiência que tinha como fazedor de buracos, esclareceu-me, pois estava considerado o maior construtor de poços de todo o Algarve, tendo, inclusive, preparado o poço do pároco e o de um político, não poderia ele furtar-se a comparecer com sua contribuição.
Será que somente eu vejo o que se passa?
Mathias botou-se louco de todo. Parti da residência dele com a cabeça fervendo de preocupações e maus pressentimentos. Ninguém desconfia o trabalho que me dá esse meu amigo. Não fora eu a cuidar de tudo, não sei onde estariam ele e o infeliz Frederico.
(continua)

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